sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O ESTORVO: uma tropicalização de Edgar Poe.



24/02/17 23h55min: Adicionada a estrofe 10, correspondente à estrofe 11 no poema original.


O ESTORVO


Certa vez, de madrugada, com a vista debruçada
Sobre uma apostila usada, dessas que ninguém lê mais —
Bocejando, já caduco, de repente um vuco-vuco
Dei de ouvir, como um maluco que batesse à minha porta.
"É um maluco... Quem se importa? Isso é o que a bebida faz:
Está bebo. Nadimais."

Dessa noite eu bem me lembro: foi num porre de um dezembro,
E das velas, num vaivém, brotavam chamas viscerais.
Eu ansiava pelo dia e cada folha em vão treslia,
Besta que era, a ver se ali a dor calmava ou ia embora —
Dor da falta de Leonora, dela que eu vivia atrás
E não voltou nunca mais.

E o balanço lento e chocho do meu cortinado roxo
Infundia-me uns tremores que ninguém sentira iguais;
Antes que eu tivesse um infarto, bem baixinho no meu quarto
Repetia-me: "Estou farto: é só um maluco sem relógio
Esperando que eu aloje-o. Vou mostrar como se faz,
Que o safado não vem mais."

Como quem a voz engrossa na coragem: "Velho, ou moça,
"Cara", eu disse, "Ou dona, escuta... Eu nem sei o que te traz;
Mas, seguinte: essa batida me deixou bem pê da vida.
Eu não vou te dar guarida. Olha, eu quis deixar passar,
Mas não dá para aguentar" — E o portão abri, voraz;
Era a noite; nadimais.

Retornando ao meu quartinho, novamente o burburinho
Que me fez tremer na base — dessa vez bem mais tenaz.
"Santo pai", gritei, "Cautela... Foi de fora da janela...
Vamos ver o que tem nela e pôr um fim nesse tormento —
Com certeza é só o vento... Saberemos num zás-trás
Que é só vento... Nadimais..."

Destranquei-a, abri o batente, e num revés, tão de repente,
Veio o vento, e uma esquisita Mariposa veio atrás.
Ignorou-me por completo, e, como um vulto irrequieto,
Voou até pousar no teto, sacudindo a negra saia
Sobre um pôster do Tim Maia, na parede lá de trás;
Foi, pousou e nada mais.

A bichinha velha e escura amenizou minha amargura
Pelas pompas decadentes, pelo jeito perspicaz;
"Apesar da asa rasgada", fui puxando assunto, "nada
Transparece de espantada, entrando assim, e assim enorme.
Qual teu nome? Pois me informe, se é que um nome você traz."
E ela disse: "Tanto faz."

Não pensava que esse verme fosse mesmo responder-me.
Se o que disse fez sentido, pouco importa — pois, rapaz,
Combinemos uma coisa: tu já viste mariposa
Que entra no teu quarto e ousa conversar de igual contigo?
Eu duvido, meu amigo; nem existem animais
Que se chamam "Tanto Faz"...

Mas a mariposa queda sobre o Tim que se empareda
Parecia desdobrada nessas sílabas fatais.
Nem tentou falar mais nada, nem saiu em revoada,
E eu, em voz bem moderada, resmunguei: "O dia avança;
Como os bondes e a esperança que eu perdi, também te vais."
E ela disse: "Tanto faz."

Outro baque. Então, perplexo pela tréplica sem nexo,
"Claro", eu disse, "o que ela fala é imitação de Satanás:
Quando ainda era larvinha, toda noite o Cão lhe vinha
Repetir a ladainha, até gravar-lhe ao coração;
E eis a única razão que de supor eu sou capaz
Para tanto Tanto-Faz..."

Matutando em que rolava sem dizer uma palavra
Para os aurinegros olhos que me ardiam mais e mais,
Reclinei-me no banquinho e, contemplando o negro linho,
Me esqueci de estar sozinho: "Lê, meu bem, pega a vassoura."
Foi então que vi: Leonora me deixou pra nunca mais...
"Ai, que falta ela me faz..."

O climão era tamanho, mas do nada um cheiro estranho
Inundou meus aposentos como um banho de erva e sais.
"Céus", chorei, "que doce esmola ao desespero que me assola!
Sente, sente essa marola — esquece a outra de uma vez;
Há no mundo tantas Lês — esquece! Esquece! Engole os ais!"
De repente: "Tanto faz."

"Coisa ruim de borboleta", eu disse, "cria do capeta,
Se o verão é que te trouxe, ou se foi mesmo Satanás —
Temerosa, mas arauto — nesta rua sem asfalto,
Neste quarto — na moral, tô de joelhos, me responde:
Onde é o fim do túnel? Onde? Me responde, e um bem me faz!"
Mariposa: "Tanto faz."

"Coisa ruim de borboleta, serva ou cria do capeta,
Pelo teto que nos cobre, pelo amor de nossos pais —
Tira o peso do meu peito e diz pra mim se ainda há jeito:
Quando enfim reencontrarei todo esse amor que hoje me fere,
Que tem nome de mulher e que partiu pra nunca mais?"
Mariposa: "Tanto faz."

"Quer saber? Tu que se dane, ô coisa ruim! Não me atazane!
Vá pro quinto dos infernos dar um beijo em Satanás!"
Pra expiar de vez minha alma, dei um pulo e, abrindo a palma,
Soquei-a — não menos calma — sobre o pôster do Tim Maia,
E na boca do Tim Maia seus fluídos corporais
Escreveram "Tanto faz".

E o que foi a mariposa agora pousa, agora pousa
Sobre a boca do Tim Maia na parede lá de trás;
E o seu olho ardendo aceso com irônico desprezo
Sob a luz projeta o peso de um silêncio no recinto;
E esse peso que ora sinto me enche de uma estranha paz,
Ou remorso, tanto faz...






10 / 2016